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Um brise-soleil como salva-vidas

Um passeio pelo único projeto de Le Corbusier na América Latina, a Casa Curutchet

Por Caroline Carvalho

26 de Julho de 2022

Em um dia de 1948, Le Corbusier recebe uma carta vinda da Argentina tendo como remetente Pedro Curutchet, que devia ter uma boa habilidade de escrita, pois seduziu o suíço-francês para projetar o que viria a ser sua única construção no continente americano. 

Curutchet foi um cirurgião médico que realizou pesquisas científicas, publicou livros e criou instrumentos cirúrgicos bem importantes lá no seu momento. Isso já seria o suficiente para contribuir socialmente com seu país, mas ele quis deixar uma "lição de arte contemporânea, ..., de vanguarda, do original espírito criador" aos interessados em arquitetura moderna, como descreve na carta depois de receber o projeto de Le Corbusuier. Merci, Curutchet. 

A construção foi entre 1949 e 1955 no reduzido terreno entre três casas e com uma praça em frente - a cidade é La Plata, não a capital do país e sim a capital da província de Buenos Aires. A cidade foi planejada do zero, uma ideia "a la Brasília", sendo que, algo como oitenta anos antes. O desenho urbano é de um grande quadrado de 40 por 40 quadras, que se organizam em menores quadrados delimitados por avenidas e diagonais que se conectam em alguns pontos com parque e praças arborizadas. E isso já despertava meu interesse em conhecer.

Com essa pendência em ir à cidade, distante por 60 quilômetros de Buenos Aires, estava também a de conhecer a Casa Curutchet. Encontrei dois outros interessados, o namorado e um amigo dele que, na época em que cursavam arquitetura, falavam em conhecer essa "jóia" arquitetônica. No último sábado de julho, Nicolas e a namorada passaram para nos buscar e seguimos para La Plata em um dia de neblina, alta umidade e um pouco de chuva. Havia ali também a sensação de realizar algo planejado entre eles e a arquiteta não se deixou inibir pelo clima.

Chegamos minutos antes do horário da visita. Foi bonito (e divertido!) ver os dois ali tentando relembrar algo das aulas sobre o arquiteto, dos seus "cinco pontos para uma nova arquitetura". Seria a rampa uma delas? A persiana na garagem fazia parte do projeto? A cor da porta seria aquela mesma? Eu que curti o tom de marrom parei para fazer uma foto quando alguém do outro lado abre e nos pergunta se temos reservas. Por precaução, sim!

Joaquim é o guia da Casa Curutchet, que segue sendo da família, mas administrada pelo conselho de arquitetos da província de Buenos Aires. Quando finalizou sua fala com a introdução ao universo corbusiano, à cidade de La Plata, ao dr. Curutchet e ao projeto contratado, respondeu algumas das nossas tantas perguntas e nos permitiu percorrer livremente pelo espaço.

Entre 1920 e 1930, Le Corbusier vinha aplicando sua linguagem formal através dos cinco pontos do seu racionalismo, documentados nos impressos l´esprit nouveau e vers une architecture e, com estréia no projeto Villa Savoye, cidade francesa de Poissy. A sua nova arquitetura fazia referência à casa como uma "máquina de habitar" em que a beleza está na sua função. 

Construída com a função de moradia e clínica médica, em espaços separados e conectados por uma rampa, o projeto da Casa Curutchet segue os cinco pontos, assim como a Villa Savoye.

Os "pilotis" estão ali como base, um conjunto de colunas que sustentam o térreo do edifício com dois andares, um entre piso e um terraço. Graças a eles, é possível criar um "vão livre", outro ponto da teoria corbusiana que influencia arquitetos modernistas como a ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (oi, Masp e Casa de Vidro).

Subimos uma rampa e começamos a observar cada detalhe, as cores, os materiais, as formas. Entre um registro e outro, estava atenta aos comentários dos arquitetos, por vezes me afastava um pouco e ia percebendo cada esquina curva, a altura dos ambientes seguindo as proporções humanas, os espaços por vezes até reduzidos. Chegamos ao último andar da casa e lá está ele, o "terraço com jardim". Considerado o mais importante da casa, a proposta é de aproximar a natureza e regular a entrada solar. Inclusive, o projeto previa a plantação de uma árvore na fachada e outra entre os dois volumes construídos, o que foi feito. A do interior está ali frondosa, como parte do todo. A da calçada esteve em tempos passados, hoje sua ausência permite máxima visibilidade aos transeuntes. 

Na carta que Le Corbusier descreve o projeto, ressalta que o andar aberto permite "uma vista sobre o parque protegido da circulação e mirada dos curiosos" mas, segundo relatos, Dr. Curutchet não sentia essa privacidade e esse foi um dos motivos da família (sua esposa e duas filhas) terem vivido menos de dez anos na casa. 

Outra crítica que fez foi ao excesso de luz; estaria mal uma intervenção com cortinas como foi a solução encontrada pelo Masp para proteger as obras de arte da pinacoteca. As "janelas horizontais" garantem iluminação natural para o interior e o brise-soleil deveria cumprir sua função para controlar a entrada de luz. Preciso voltar no verão e ver se estou de acordo com o doutor.

Depois de visitar o espaço do consultório com seus móveis e instrumentos de aço inoxidável e desejar profundamente um espaço daquele para trabalhar, desci a rampa, voltei à entrada da casa e lá estava o quinto ponto, a "fachada livre", independente da estrutura interna para apoiar-se. Segui com certa intriga com a porta, agora pela sua moldura de concreto, mas que parece flutuar no espaço. 

Saímos e seguimos caminhando pelas ruas que nos perguntamos se Le Corbusier também havia passado por elas em sua única visita à La Plata em 1928. Com construções similares a de um bairro residencial de Buenos Aires, como se não tivessem limites geográficos, a próxima parada foi para conhecer a gastronomia local e encontramos outro motivo para um hasta luego.  

De volta à Buenos Aires, motivados em saber mais da casa que foi declarada pela Unesco como Patrimônio Mundial junto com outras 16 obras de Le Corbusier, seguimos a recomendação de Joaquim para assistir A obra secreta filme em que a casa é apresentada sob a perspectiva do personagem Elio Montes, um arquiteto fanático que trabalha entusiasmado como guia.

Nas imagens em movimento, o pensamento corbusiano, a ruptura no seu modelo de fazer arquitetura, o efeito da indústria e suas máquinas, teorias que envolviam "simplicidade" e pureza. Em uma cena, Elio acredita encontrar-se com o ídolo e aproveita para perguntar - sob pressão, agarrado em seu colarinho - se ele simpatizava com as ideias fascistas de Mussolini. Não obteve resposta. O clima se torna tenso, a decepção parece manifestar-se e o arquiteto-guia segue o seu caminho. Talvez volte no dia seguinte e tenha os sentimentos equilibrados por um brise-soleil.

Por Caroline Carvalho

Contadora de histórias por meio de joias (@carolajoias), aulas-tours (@vamos_modar) e, por aqui, palavras. Os afetos presentes na arte, na arquitetura e no design muito lhe interessam.


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