comportamento
De uma jornada pessoal a um movimento geral até a base do Everest
Como a mochileira Marina Pedroso conseguiu se reencontrar e agora incentiva outras mulheres a se redescobrirem
22 de Agosto de 2022

Nunca entendi como meu ascendente poderia ser Capricórnio - de coração gelado, não tenho nada. Pelo contrário, sempre fui vulcânica. Mas então reparei no símbolo que o representa: uma figura meio cabrita montanhesa, meio peixe.Também ouvi dizer que é o signo daqueles que buscam construir sua independência e seus próprios caminhos. Pois veja, desde que se tem notícias minhas por esse mundo sou isso aí. Para o terror da minha mãe, um bebê que mergulhava de cabeça na banheira e empilhava objetos pela casa só pra escalar. Para o terror do meu pai, uma menina que aos 23 começou a viajar sozinha em busca de algo mais: em si, no mundo e na vida.
Figura híbrida. Onze meses ao ano trabalhava como repórter de moda e beleza em redações ou como PR em agências. Sobrava aquele um mês em que fazia mágica com dias de férias e horas extras para pegar o mochilão e rodar a América do Sul, pelo máximo de tempo possível. Então um sonho começou a ser soprado no meu ouvido: garota, por que não vai ainda mais longe? Vai viajar o mundo…vai peregrinar, explorar, se encantar, descobrir, viver. E fui.

Saí do Brasil em dezembro de 2019 e comecei minha viagem de volta ao mundo pela África do Sul, onde visitei um centro de refugiados, ouvi histórias de mulheres do Malawi, Congo e Zimbábue e vi de perto a herança viva do Apartheid. Em Moçambique, fiz amizades de vida num festival "pé na areia" e ganhei novos olhares ao entrevistar a escritora Paulina Chiziane em sua casa. Em Zanzibar convivi pela primeira vez com a cultura muçulmana, nadei com golfinhos no mar e joguei futebol com homens da tribo Masai Mara, que têm uma cultura nada favorável às mulheres, diga-se de passagem. Na Tanzânia, acampei rodeada por oito búfalos no safári do Serengeti, visitei uma tribo de viúvas e ajudei a libertar um amigo que ficou preso na cadeia durante dez dias por uma confusão na fronteira.
E então veio a grande onda. Estava voluntariando em um projeto para mulheres soropositivas para HIV no Quênia quando a pandemia chegou. Com a ajuda de um indiano que conheci em Nairóbi, encontrei refúgio em um apartamento de frente ao Mar de Mombasa, onde vivi o luto pela morte de uma amiga viajante por malária.

Oito meses depois, segui para a Etiópia e concluí a travessia de sul a norte da África no Egito, onde morei e viajei sozinha por outros nove meses. Vi muito além das pirâmides. Deixei minhas pegadas em desertos, vilarejos e templos, nadei e fiz um cruzeiro pelo rio Nilo, amanheci com o sol no Monte Sinai e aprendi sobre a cultura muçulmana da melhor maneira possível: tendo um relacionamento esquisito de quatro meses com um boy e fazendo amizade com as mulheres egípcias. Foi no Mar Vermelho que tirei meus certificados como mergulhadora oficial.

E se o mar me acolheu nos momentos mais difíceis da viagem e me ensinou a encontrar belezas no profundo, as montanhas me mostraram como uma cabrita se transforma em leoa. Primeiro, ao subir o pico do Kilimanjaro, o ponto mais alto do continente africano, a 5.895m de altitude. Lá, descobri uma força que não vinha dos músculos e me vi gigante. Depois, ao caminhar pelos Himalaias, entre as montanhas mais altas do mundo, e chegar no Campo Base do Everest, a 5.364m.
Nem lembro quando comecei a sonhar com o EBC, mas estava entre os itens do topo da minha bucket list de viagem de volta ao mundo. Depois da pandemia, deixei de canto - sabe-se lá quando poderia ir à Ásia. Por ironia, o chamado veio enquanto estava acamada por Covid na Turquia, para onde segui depois do Egito. Senti que precisava me alimentar com um novo desafio. Quando vi que o Nepal estava aberto, decidi: havia chegado a hora de realizar mais um sonho.

E vou te falar… a trilha é uma escola. Você não só lembra da sua pequenez humana diante de tanta magnificência da natureza, como aprende na marra sobre impermanência e o fluxo da vida. Como diria um sábio filósofo brasileiro, “dias de luta e dias de glória”… um não existe sem o outro. Não tem como chegar no alto sem pisar na lama. Digo mais. Não é sobre o destino, mas sobre a jornada. O quanto de si você deu pra alcançar o objetivo e quem você se tornou para chegar lá. Cria-se uma relação íntima com seus limites - entende quando respeitá-los ou ultrapassá-los para se superar. É a dança entre abrir espaço para os processos internos acontecerem enquanto comparece para honrar seus sonhos.
E ao contrário do que se pensa, não precisa ser ultramaratonista para fazer a trilha até o Campo Base do Everest. Ao mesmo tempo, não significa que seja uma trilha fácil. São doze dias caminhando de 8 a 9h na altitude. Logo, é preciso, sim, um mínimo de condicionamento físico. Apesar disso, digo que 70% do que te leva até o Campo Base é o mental e o coração.

Em resumo: pode apostar que haverá perrengue. De cansaço a sintomas de altitude como dor de cabeça, perda de apetite, enjoo e até insônia, as montanhas testam o seu querer e entregam o que cada um precisa aprender. A que você veio? Essa resposta depende de cada um, mas uma coisa posso garantir: não tem como voltar igual.
E foi por isso que decidi liderar expedições de mulheres para viver essa experiência e tirar seus próprios aprendizados e transformações. Não tem nada mais potente do que se descobrir leoa. Invariavelmente, essa revelação também desperta a força em outras mulheres à sua volta.
Veja, em todos esses países - e por todos os que ainda virão -, meu objetivo principal nunca foi o de turistar. Mais do que isso, busco explorar territórios internos, expandindo minhas fronteiras, (re)encontrando comigo mesma e construindo o ‘ser mulher’. Afinal, a ideia de me lançar no mundo ganhou o triplo de força quando descobri sobre a Jornada do Herói, de Joseph Campbell - trata-se de uma estrutura narrativa presente em diversos mitos do mundo e por trás dos roteiros de Hollywood. Nela, um homem comum recebe o chamado à aventura, encontra com inimigos e mentores, percorre todo um ciclo de desafios e volta com o bliss. Lendo sobre, as orelhas ficaram em pé e questionei: mas e como é a Jornada da Heroína? Mulheres têm, no mínimo, diferentes obstáculos… precisamos percorrer caminhos internos para sobreviver e ressignificar os externos e vice-versa. Percorrer o mundo, então, se tornou um convite para uma odisseia dentro de mim mesma. Mas ao compartilhar a minha jornada e o que aprendo nela, percebi um certo fenômeno - muitas mulheres passaram a me escrever contando como algo que eu tinha dito havia reverberado na história delas.

Caminhando pelo mundo confirmei uma teoria minha: assim como todos entendem o significado de um sorriso independente de nacionalidade, cultura, até língua, o "‘ser mulher" também tem algo de universal e primordial. Nos encontramos nesse lugar antes de sermos brasileiras, chinesas, muçulmanas, gordas ou magras, de cidade ou vilarejo. Compartilhamos dores, potências e experiências, mesmo que em diferentes intensidades, recortes e camadas. Podemos ter jornadas individuais, mas ao mesmo tempo temos uma jornada coletiva.

Assim, todas as mulheres com quem cruzei até agora nessa viagem surgiram como espelhos ou com algum pedaço do meu quebra-cabeça pra me entregar. Ao me contarem suas histórias, me contaram algo sobre a minha também. Da África do Sul ao Egito, da Ucrânia à Turquia, do Mar Vermelho aos pés do Everest…
E agora da Indonésia, de onde compartilho minha história com você que me lê. Deixo minhas palavras pra que costure como quiser à sua jornada. E quem sabe não nos encontramos em alguma temporada no Nepal, em novembro na Tailândia, em fevereiro pela Índia…? O mundo é tão grande. Nós também. Da taurina-capricorniana com jeitão sagitariano que te escreve, fica esse desejo: que você percorra seus caminhos com coragem, mergulhando pelos seus mares e desbravando suas montanhas - sejam elas quais forem.
