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cultura

Sempre é tempo de Lina

Uma visita ao modo de fazer arquitetura de Lina Bo Bardi

Por Caroline Carvalho

28 de Novembro de 2022

"Do lado de fora dos tapumes de madeira compensada que cercam o canteiro de obras do Museu de Arte de São Paulo (MASP), o fluxo barulhento dos carros na avenida Paulista ecoa o ritmo da cidade, cada vez mais frenético. Eram meados da década de 1960, e a economia de São Paulo estava em pleno vigor. Um dos carros desacelera próximo à calçada e estaciona. Em silêncio, a passageira do banco da frente pega sua bolsa, põe os óculos escuros, abre a porta e pisa o meio-fio de granito vestindo botas de trabalhador e roupas pretas impecáveis, que contrastam com a luminosidade do sol tropical. Do outro lado dos tapumes, o mestre de obras subitamente chama a atenção da equipe. Uma agitação repentina, seguida de correria, toma o canteiro ao som de seu grito: a mulher chegou!".

A mulher é Lina Bo Bardi (1914-1992) e o trecho faz parte do prólogo do livro "Lina Bo Bardi: o que eu queria era ter historia". A minha leitura do momento foi escrita por Zeuler R. Lima que, por vinte anos, pesquisa a vida e obra da arquiteta ítalo-brasileira. 

Ouvi pela primeira vez o nome de Lina em um dia de novembro de 2014 conversando com quem viria a ser minha orientadora do mestrado. Mirtes Marins, socióloga e, naquele momento interessada por design de exposições, me indicou a ver "Maneiras de expor – arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi". No dia seguinte, lá estava eu no Museu da Casa Brasileira. Ainda lembro detalhes do dia em que fui transportada para seu universo particular. Madeira de pinho usada como referência à simplicidade, olhar esperançoso e soluções apresentadas para um Brasil com baixa auto-estima, a validação do made in nordeste, palavras escritas e aquelas ditas por quem conviveu com Lina. Saí encantada. Isso não era bom para a pesquisa científica, mas a curiosidade em saber mais sobre, sim. 

Mudei da cidade piauiense de Teresina para Sampa em março de 2015 e o nome Lina Bo Bardi ressoava no meu entorno familiar, de amigos e colegas acadêmicos. Passados anos, sigo recebendo e-mails e mensagens no direct do instagram de novos livros, exposições, comentários e artigos científicos. Mas confesso que depois dos anos imersa em sua produção artística, estava saturada. Até que Zeuler lança seu livro e aqui estou eu, redescobrindo Lina oito anos depois. A história contada de maneira cronológica me faz repensar a frase dela, talvez a mais reproduzida: "o tempo linear é uma invenção do ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim".

Se fosse para revisitar "pontos" ou maneiras de fazer arquitetura de Lina e buscar conexões com o nosso tempo presente, escolheria imediatamente três.

1 - O MASP. E justifico com as poéticas palavras de Zeuler: "à medida que a avenida era tomada por um batalhão de edifícios fálicos, a floresta de andaimes de madeira que emergia do terraço do Trianon abrigava a construção do amplo vão e da praça que o projeto de Lina oferecia à cidade como um útero, sempre aberto a gerar vida nova". Pergunto-me se Lina teve consciência do que o MASP representa hoje. Ela disse que ao conceber o edifício, não procurou a beleza, e sim a liberdade. Talvez pensando na que ela encontrou no Brasil. É uma construção quase que viva, pulsante, latente. 

2- Cavaletes de vidro. Continuo no prédio, agora em um espaço específico, a sua Pinacoteca. Lina queria que as obras consideradas mais importantes do acervo do museu estivessem em diálogo com a cidade, por isso seu projeto não previa cortinas ou nenhum tipo de intervenção nas paredes laterais transparentes. Essa batalha ela não ganhou.

Não era sua vontade neutralizar o entorno criando uma "aura" nas obras. O destaque deveria ser as pinturas (que ela desejava retirar das molduras, outra batalha perdida). Mas, para muitos, são os cavaletes que sustentam as obras o atrativo principal da sala de exposição. Deslocando as obras, tradicionalmente fixas nas paredes, elas fazem parte do caminho e é o visitante que dá a devida atenção àquela que desperta maior interesse, podendo inclusive criar algum tipo de interação com a obra (sem tocar ou jogar molho de tomate, claro).  Os cavaletes de cristal possuem uma base de cimento que sustenta placas de vidro, que por sua vez é suporte para a tela. Esse modelo expositivo é uma ideia que ela foi moldando a partir dos suportes usados pelos seus conterrâneos na Italia dos anos 1930. As exposições imersivas digitais dos nossos tempos são uma garantia que Lina olhava o passado para pensar o tempo presente, mas chegou até o futuro.

3- Exposição "A mão do povo brasileiro". O convite para direcionar o olhar ao que nosso país produzia artesanalmente e no seu princípio industrial. Uma compreensão cultural para além do exótico, alegorias e fantasias. A questão, décadas depois dessa exposição apresentada pela primeira vez na abertura do MASP em dezembro de 1968 é: sabemos quem somos? Como podemos percorrer caminhos entre nossas vulnerabilidades e nossas forças? Como nossas nuances são exportadas ao mundo? 

No catálogo da exposição "Maneiras de Expor", Marcelo Ferraz fala sobre o intuito que tinha Lina de "fazer com que as pessoas se vejam, se reconheçam e reconheçam sua cultura e o valor de sua cultura. (...) ela não fazia exposições. Ela fazia movimentos políticos de criar nas pessoas forças para que as culturas se falassem, aparecessem, entrassem em cena". Talvez eu não estivesse sozinha ao ver Lina com encantamento. Mas é que a sua inquietude faz dilatar as nossas veias latinas. Seu modo de projetar é base para um discurso bem-vindo e necessário. Na década de 1990, nos últimos anos de vida, ela dizia que se voltasse a nascer, somente colecionaria amores, fantasias, emoções e alegrias. Um salve à sua verdade e bravura. Reminiscências de esperança.  O tempo parece mesmo não ser linear, porque sempre é tempo de Lina. 

Por Caroline Carvalho

Contadora de histórias por meio de joias (@carolajoias), aulas-tours (@vamos_modar) e, por aqui, palavras. Os afetos presentes na arte, na arquitetura e no design muito lhe interessam.


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